domingo, julho 26, 2009

domingo, julho 12, 2009

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Sr. Zé
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“Menina Sílvia, menina Sílvia…” chama o homem de negro sentado na mesa do café arrastando o Síííl, devagarinho e docemente, para a mulher atrás do balcão, ela escuta-o e desvia o olhar na sua direcção. “Está boa menina Sílvia, como está?” e o tom dele quase de súplica, olhar que clama por dois segundos de atenção, menina Sílvia, como os miúdos meigos quando anseiam que reparem neles. “Olá Sr. Zé” respondeu ela num sorriso, secando as mãos com um pano húmido, igual ao seu cabelo, suado e sem forma, levantando a cabeça para conseguir vê-lo melhor por detrás do balcão, “ Como é que está Sr Zé, está bom?” pergunta-lhe com simpatia e atenção feminina.

O Sr. Zé terá os seus setenta ou mais anos, está sozinho no café comendo um bolo e deve ser cliente habitual, a julgar pela forma como ele e a empregada se cumprimentam, o trato familiar e amigo dela, o jeito contumaz de a chamar, dele. Lembrei-me de algumas situações, não muitas é certo, que me aconteceram nos lares que visito, quando um idoso se aproxima de mim com desejo que nele repare, que lhe dê atenção, falando atabalhoadamente com receio que eu desapareça depressa, sorrindo-me muito com um olhar que me transporta para a imagem de alguém que assimilou muito pouco o uso da contemplação, um olhar muito pequenino e venturoso, risonho, de quem não levou a vida demasiado a sério ou cogitado muito sobre ela sequer, um olhar de quem está cá para o que der e vier, e ali está comigo e mal sabe quem sou, mas sorri porque sou visita, porque sabe que fui vê-los e onde vivem e eu num instante célere a olhar de volta para ele, olho no olho, sorrindo também e divisando como bom seria acabar assim os meus dias, de olhar miudinho e feliz em vida solta, subtraída de reflexões excessivas e pressupostos redundantes, de sonhos que voaram alto e se perderam na eternidade.

O Sr. Zé faz-me lembrar os velhotes que se sentam o dia todo na sua cadeira — possivelmente cada um tem a sua cadeira e não há muita coisa que possa ser apenas sua lá dentro — contemplando os repetitivos gestos do quotidiano das auxiliares que lhes dão de comer, os lavam, os deitam ao lado uns dos outros nos entardeceres transformados em noites. Ali, encostados na parede branca junto da grande e sonora televisão que eles nunca miram, querem lá eles saber da televisão, o olhar perde-se longe no vazio, na sombra da memória, na linha do chão, na espera. Em alguns é imensa a vacuidade, transborda indisfarçada no seu olhar triste, deixa-me inquieta, comovo-me e tento não pensar, preciso afastar dali a mente e a minha comoção, tento representar o meu papel, sou simpática, não sei que lhes dizer mais para além das frases feitas do costume, fico embaraçada enquanto sorrio e tento disfarçar o que sinto, porque me sinto falsa e eles querem lá saber das minhas perguntas “Gosta da comida, Sr. Manuel?” ou “Foi bom o almoço D. Joana?”, que eu sei que eles vivem para comer, é uma hora importante do dia a hora das refeições, é o seu ponto alto de manhãs e tardes quase sempre iguais, quase sempre na mesma cadeira em frente ou ao lado da grande televisão ignorada, quem dera gente na vez da televisão, as vozes estrepitosas dos filhos ou dos netos…visitas são bem poucas as dos meus amigos conformados e tristes, alguns, que outros há alegres, e de namoro novo, adoro esta parte da coisa, quando me contam que a D. Joaquina e o Sr. Francisco começaram a namoriscar lá no Lar e dão-se muito bem, passaram a viuvez de outro modo, que a maioria deixa de viver quando o companheiro morre porque parece-lhes mal que se divirtam as viúvas, são de antiga muito antiga geração, uma omnipresente e pesada lei costumeira impede-os de deixarem o preto do luto para voltarem a ir nas excursões, a colaborar nos preparativos das festas, a dançar no bailarico dos santos.

O Sr. Zé, no café, já choramingou enquanto eu escrevo, quando uma senhora dele se aproximou e ali ficou um pouco a conversar acerca da recente morte da sua esposa e sobre as suas noites passadas sozinho, mas deixe lá Sr. Zé não pense nisso, e fique em sua casa fique em sua casa enquanto puder, não deixe a casa Sr. Zé, está lá melhor ainda que sozinho, não lhe parece? Não pense muito nisso. Que o melhor é não pensar muito nisso, Sr. Zé.


sábado, julho 11, 2009

A Barca