quarta-feira, novembro 29, 2017

Os barulhos que ouves são meus
investindo com toda esta carcaça
nos fundos, pelos séculos, uma dor
ao acordar de qualquer sonho
e olhando em volta, estimo os danos

a eternidade que vos entusiasma tanto
trocava-a por uma cerveja fresca
numa tarde que ardesse com cem sóis,
eu que nem gosto de cerveja,
que fico a ver-nos de volta
das sobras de uma ode
como essa bala-mosca de roda
das nossas cabeças não sei
se dentro se fora

as mãos torcidas, pontas dos dedos
queimadas, de tanto puxar a linha,
e se me perguntas o que acho,
há muito que devíamos
ter livrado os versos da tortura da beleza
fria, forçada
prefiro as passadas de loucos,
essas migalhas que denunciam o caminho
daqui até ao outro mundo

enterra a língua e volta anos depois
para saber o que escapou ao apetite dos vermes,
aos poucos assim aprenderemos
a deixar versos como ossos,
e mesmo jardins desses onde se dissolvam
os velhos encostados a torsos mutilados
onde a cidade timidamente se
entorne e se te apetecer faz florir
ali no largo as cerejeiras do Japão

o guarda da floresta sabe o que lias
longe dos outros, depois da escola,
nem que tenhamos de voltar lá:
Verne, Stevenson, Dumas

sei bem o que é esperar a noite
o quarto, um capítulo rasgado do inferno,
por obsceno, raivoso
(se visses as minhas notas
antes de limar as unhas ao poema)
e ali um velho ouvindo do horror
confissões capazes de romper-vos uma veia

enciumado, imaginando que chegarás tarde
lendo até à embriaguez e de manhã,
ao acordar, cuspimos os dentes de outros
poetas para a pia

a mim, já nenhum som me importa
oiço outras coisas, na cabeça
uma orquestra fica de serviço
aos meus exageros como à suave
insanidade de chinelos
no andar de cima

aperto na boca o gatilho
aguardando a noite em que te canses
e me deixes uma bala no tambor
isso e um bilhete indecoroso
antes de te vestires de luto

olho para o lado a flor
bebendo o escuro, pousando
a cabeça na tua saia, ao canto,
como um trapo com que enxaguei
o vinho derramado no chão
fico ali, amolecendo às claras,
enquanto não te vens deitar
e apago a luz de uma estrela decrépita
que, junto à cama, nos serve de candeeiro

Diogo Vaz Pinto
in http://omelhoramigo.blogspot.pt/