domingo, abril 27, 2014


soneto do amor e da morte

quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não
tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.

Vasco Graça Moura (1942-2014)

quinta-feira, abril 24, 2014



...



quinta-feira, abril 17, 2014

de que me serve ser bonita?
se de luxúria incandescente
não alimento a alma com a fruta dourada e cheia.

de que me serve ser bonita?
serve os teus olhos, intensos,  insandecidos
sorvendo na minha tez.

de que me serve ser bonita?
se vomitei a pergunta na penumbra e em ti poderá nunca nascer a palavra
outra.


de que me serve ser bonita?
se não sei o silêncio em mim mas sei não pedir flores
(disseram-me que não se pedem flores).

de que me serve ser bonita?
se os meus olhos mudaram tristes
e justos sei os teus se não querem ver.

de que me serve ser bonita?
se nos precipito e não páro o Tempo com um chicote de voltear
porque não sou deusa.

de que me serve ser bonita?
se me derretes de sons e lambes o sabor da cereja que escorre
mas não sei o que (te) fica e não sei se quero saber.

de que me serve ser bonita se não sei nada? 
se me perdi na análise refogada do real 
ou do sonho a escorregar nas persianas das minhas pestanas.

de que me serve ser bonita?
se a palavra não nascer?
e tu não sabes responder-me. e eu não posso perguntar
de que me serve ser bonita?

(no meio tudo o que me ofereces  é belo não sou injusta).

terça-feira, abril 15, 2014

Num campo
eu sou a ausência
de campo.
Acontece
sempre o mesmo.
Onde quer que esteja
sou aquilo que falta.

Ao caminhar
separo o ar
e de todas as vezes
o ar precipita-se
para preencher os espaços
onde o meu corpo esteve.

Todos temos motivos
para nos deslocarmos.
Eu desloco-me
para manter as coisas inteiras.

Mark Strand
uma definição

o amor é uma luz
que atravessa de noite o nevoeiro

o amor é uma carica
pisada a caminho
da casa de banho

o amor é a chave perdida da tua porta
quando estás bêbedo

o amor é o que acontece
um ano em dez

o amor é um gato esmagado

o amor é o velho ardina
parado na esquina que
largou a profissão

o amor é o que tu achas que a outra
pessoa destruiu

o amor é o que desapareceu no
tempo dos couraçados

o amor é o telefone a tocar,
a mesma voz ou outra
voz mas nunca a voz
certa

o amor é traição
o amor é o fogo que consome
os sem-abrigo numa viela

o amor é aço
o amor é a barata
o amor é uma caixa de correio

o amor é chuva a cair no telhado
de um velho hotel
de Los Angeles

o amor é o teu pai num caixão
(que te odiava)

o amor é um cavalo com uma pata
partida
a tentar levantar-se
perante uma assistência
de 45.000 pessoas

o amor é o nosso modo de cozer
como a lagosta

o amor é tudo aquilo que dissemos
que ele não era

o amor é a pulga que não consegues
encontrar

e o amor é um mosquito

o amor são 50 granadeiros

o amor é uma arrastadeira
vazia

o amor é um motim em San Quentin
o amor é um hospício
o amor é um burro parado numa
rua de moscas

o amor é um banco vago ao balcão

o amor é um filme do Hindenburg
a encarquilhar-se em pedaços
um instante que continua a gritar

o amor é o Dostoiévski a dar
à roleta

o amor é o que rasteja
pelo chão

o amor é a tua mulher a dançar
agarrada a um desconhecido

o amor é uma velha
a roubar um pedaço de
pão

e o amor é uma palavra usada
demasiadas vezes e
demasiado
cedo.

Charles Bukowski
(tradução de Vasco Gato)

segunda-feira, abril 14, 2014

Quando somos novos - quando eu era novo - queremos que as nossas emoções sejam como as que conhecemos de ler nos livros. Queremos que nos virem a vida do avesso, que criem e definam uma nova realidade. Mais tarde, penso eu, queremos que façam uma coisa mais suave, uma coisa mais prática: queremos que amparem a nossa vida como ela é e como passou a ser. Queremos que nos digam que as coisas estão bem. E há nisso algum mal?


Julian Barnes, O Sentido do Fim

quinta-feira, abril 03, 2014

estou a pensar aparecer à tua porta
não invadir a tua privacidade
apenas a tua boca.

vir-me
embora.

quarta-feira, abril 02, 2014



terça-feira, abril 01, 2014

aquela música, como era?
we want the world and we want it now?
sim, ficou aquele pedaço solto colado na parede do meu fundo
cinzento
que se esquece de apagar o lume e do aniversário
da mãe
aquela voz
permanente e longe

escondida afinal, para me vir
assistir sempre em cena neste palco repisado
(raios que luzem ao longe e estrondam ao perto)
está a frase pendurada no cabide do armário poeirento e ávido
que me lembra com o toque de alarme, que queria o mundo agora e tu
silêncio.