sexta-feira, agosto 17, 2007

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José Cid e o sentido da Vida

[Essa felicidade é contagiante, A. Só tu para me fazeres rir desta maneira e me deixares lamechas ao ponto de escrever isto num blog.
Canta, continua a cantar desafinadamente e a rir do outro lado da linha, é isso e apenas isso que importa e nada, mas nada absolutamente mais, amiga. Quais criancinhas a morrer de fome em África?!( não me 'livro' desta ironia irritante, pá..)
Hoje morreu alguém próximo. Lembrei-me da Sónia e a tristeza veio. Mas a tua canção, e esses pés em cima da secretária - que imagino descalços, certo? - afastam a sombra, a nebulosidade do trágico. Tenho a certeza que ela se riu bastante nesse ponto. Se essa tua beatice pegasse, não me importava de ser contaminada. Mulher, que leveza!, e não te vejo há muito. Olha, quando eu morrer, lembra-te deste dia e da tua voz a desafinar no fim, lembra-te do brilho dos meus olhos do lado de lá da linha e da distância que (nunca) nos separa, lembra-te da cor da felicidade nos segundos que durou a tua imitação fraquita de um qualquer cançonetista ligeiro da nossa praça! Pode ser? E descobrir entretanto que a felicidade se pega através das ondas invisíveis de telemóveis de segunda geração, já me fez ganhar o dia.
Ah...e também descobri entretanto, que os The National são patéticos e sublimes, porque li isso algures, e se calhar é verdade. E passo a citar, porque não resisto, e porque eles são (não são nada, mas enfim!) o meu José Cid:" Estamos cheios de merda o tempo todo. Mas isso também é honesto, ser absurdo e ser estúpido. Se uma canção for demasiado séria e auto-obssessiva, paramos logo com ela e dizemos: 'Isto não tem suficiente estupidez, isto não tem suficientes patetice e tontice honestas"'. Pôrra, pá! Sinto-me em sintonia perfeita com estes tipos!! Sublime e patético.
E para acabar, deixa-me que te diga: vai ligando, miúda! :)]

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quinta-feira, agosto 16, 2007

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Náufrago: em tua

Náufrago: em tua
vida oculta
se anuncia a luz.

Desenterrada
da sombra
uma nova alegria.

No silencioso ar
gritam os mortos
é aqui a terra.

Mas teu rosto
quebra o tédio imutável
o obscuro dialecto.

Despertas-me, escuto
o mar, o vento,
transparente como a noite.

Na semente dispersa
brota a memória
de uma dócil casa
conhecedora já
dos dramas do universo.

AMG, Canções com palavras, Gótica, 2002
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terça-feira, agosto 07, 2007

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Um torpedo chamado National

Têm no máximo um vigésimo dos adeptos dos Arcade Fire, mas é como nos anos 60, entre Dylan e Cohen: qualquer um gritava "Dylan é Deus", mas os seguidores de Cohen não precisavam de berrar o nome do mestre: reconheciam-se entre si pelo cheiro, pelo instinto. Gente da estirpe de Cohen, de frase afiada, amarga, irónica e sem lições sobre a vida (que nos Arcade Fire, por trás da fachada de proximidade com "os miúdos", está sempre presente) a pender de uma melodia frágil, aparece muito de vez em quando: no caso dos National, com esta fundura, antes apenas houve os Tindersticks, e antes destes Cave e antes dele Cohen. E é por isso que em vez de energia ou felicidade nos corpos das gentes que enchiam a tenda do palco secundário do sudoeste havia tensão: porque os pedaços de porcelana que são as canções do quinteto nova-iorquino, por mais belos que sejam, cortam quando demasiado apertados. Entraram como se estivessem na sala de estar dos amigos, Matt Berninger entre o estático e o cambaleante, com uma fortíssima Mistaken for strangers transformada em combustível para guitarras galopantes, atiraram a explosiva Secret Meeting (de Alligator, o álbum anterior ao mais recente Boxer) para o meio do mato - e antes que alguém apagasse o incêndio e recolhesse as canas, entremearam a granada de Lit Up com a falsa serenidade de Brainy. E à quarta ou quinta canção o altar de devoção aos National estava erguido, os rapazes canonizados e a data marcada nas calendas da santidade: a hora nocturna (entraram às duas da matina) ajudava à sensação de intimidade, o povo não estava sereno, Matt Berninger atirava as goelas contra o microfone. Os deuses sabem - e os putos também - que o rock precisa de espinhos e só esmagando espinhos à força de ruído de guitarras poderá o rock encenar a sua função redentora. Uma hora de concerto, sempre entre Alligator e Boxer, e mesmo as canções que em disco devem mais à orquestração foram, em palco, transmutadas em furiosos petardos de força: como se aquilo tivesse de sair ali e naquele instante. Canções que vivem do desconforto, do sentimento de desadequação em que cada personagem de cada canção é colocada, canções que vivem na vizinhança do decadentismo, trepavam a escada de Job a pulso para explodirem no pico, como em "Abel", com o verso (bastante representativo do que rumina no fundo destas canções) "My mind"s gone loose inside its shell" cantado por toda a santa alma presente naquela tenda. Chamar-lhes indie-rock é quase pecado: em disco podem ser orquestrados, épicos, melancólicos, patéticos, ruidosos ou sussurrantes. São demasiado literatos para virem a ser grandes, mas ontem, para os sobreviventes naquela pequena tenda, foram nitidamente a melhor coisa que lhes aconteceu na vida. Já houve outras coisas assim e outras haverá, mas por vezes dá vontade de mandar a racionalidade às urtigas e dizer: melhor banda indie ao cimo da terra. Mas sem gritar, claro.

João Bonifácio, Público, 07.08.2007
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B-Side
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"Fiquei triste com o concerto dos National no Sudoeste. As músicas sucediam-se e eu - isto é roto mas eu sou menina - sentia uma bola fria a crescer no estômago. A confirmação de que, pelo menos para mim, estava a ser uma desilusão. Já tinha imaginado que pudesse não ser tão magnífico ou memorável como o concerto que pude ver deles em Maio, em Berlim, durante o qual me emocionei verdadeiramente. Músicas como o Fake Empire, Soho Riots ou About Today tiveram uma leveza e, ao mesmo tempo, uma consistência que não sou capaz de explicar em palavras. Mas sei que foi muito diferente das versões atabalhoadas que vimos no Sudoeste. Adoro a banda como há muito tempo não adorava uma banda ou artista, mas sou incapaz de escrever ou pensar coisas como «não se ouvia a voz, ele esqueceu-se das letras mas foi muito bom». Não foi - pelo menos para mim. A banda (os outros rapazes) estiveram geralmente bem, mas o nosso amiguito (que entrevistei horas antes do concerto, numa conversa em que o homem não podia ter sido mais simpático, empático ou disponível) estava noutro sítio qualquer. Não se trata apenas de cambalear, isto ou aquilo. Não se ouvia a voz (culpa do som daquele palco, naquela noite, também), não intervinha entre as canções (o guitarrista tentou substituir-se-lhe mas o microfone nem parecia ligado), «fugiu» na última música, arruinou a «About Today», que é tudo menos música para risadinhas. Safaram-se as mais eufóricas e extrovertidas porque, enfim, vivem mais da adesão e do delírio populares do que da performance do vocalista. E esse foi o único aspecto perfeito da noite: o pessoal que estava lá para vê-los, cantá-los, senti-los. Eles, os fãs, deram tudo; os National, ou em particular o Matt Berninger, não. E não deve haver ninguém a quem custe mais escrever isto do que a mim. Até derramei duas ou três (pronto, quatro) lágrimas com a decepção que senti. Estou a falar o mais a sério que posso. Se calhar o concerto não foi desastroso, mas para aquilo que gosto da banda, e para aquilo que já tinha visto deles, ficou muito aquém das minhas expectativas (que nem eram assim tão altas, como tentava explicar ao moonshiner antes do espectáculo). Espero que cá voltem e que o menino beba menos. Sim, ele é conhecido por dar-lhe na pinga, mas tende paciência. O gajo em Berlim bebeu, em palco, uma garrafa de vinho e no final do concerto ainda se lembrava do nome. Preferia ter apenas falado com eles e ter-me conservado naquele estado de histeria de fã / deslumbramento / euforia por estar ali rodeada de gente que adora aquelas canções. Não guardo boas memórias do concerto em si, mas de tudo o que se lhe antecedeu. Adorava ter visto o concerto que o João Bonifácio relata hoje no Público. Aliás, vi mesmo – mas em Berlim, não no Sudoeste. No entanto, fico contente por pessoas por quem muitíssima estima tenho, como o senhor Cristiano, Dona Leonor ou Mestre Moonshiner, terem gostado. É que prefiro pensar que sou eu a esquisita, do que acreditar que o concerto foi assim, como foi. (...).
PS - Caso não tenha ficado claro, continuo a adorar a música deles. E os concertos, quando são bons. E a oportunidade de falar meia-hora com um gajo cujas letras me encantam."
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Lia (jornalista), Fórum Sons, 07.08.2007
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