segunda-feira, outubro 02, 2006

JP Simões '1970'

"Honestamente: custa ser exacto – mais fácil é o cinismo e revolutear na ironia do “charco” de ar grave, superior e inquisidor ou então aviar uma inocência supostamente politicamente incorrecta, duas atitudes típicas dos seres pensantes nacionais. Essa é a primeira grande surpresa de “1970”: em vez de ironia, em vez de humor desbragado, em vez de derrotismo – há exactidão, a crueldade de cada palavra medida e comedida e por isso tão mais eficaz, exactidão que por vezes nos leva à comoção, outras é de uma pungência avassaladora. Em “1970”, a extraordinária canção, essa sensatez ácida chega a ser sádica na sua honestidade: “A minha geração já se calou, já se perdeu, já amuou, já se cansou, desapareceu ou então casou ou então mudou ou então morreu, já se acabou”. Entra aí a cuíca e o shaker e Simões continua: “A minha geração de hedonistas e de ateus, (...) de anarquistas deprimidos, de artistas e autistas, estatelou-se docemente contra o céu”. A seguir chega a ser violento: “A minha geração ironizou o coração (…) brincou às mil revoluções, amando gestos e protestos e canções pelo seu estilo controverso”. E é aqui que surgem os metais de casino, os violinos delicados e a pele, a ater-se ainda às palavras, arrepia. Não é o único momento de arrepio, neste disco que de Chico herda o silabar doce e aquela forma em mel de introduzir coros – como o que surge em “Só mais uma samba”: atentem na generosidade do refrão, aquela maneira dengosa de subir, os “ooos” do coro embebidos numa melancolia solar de quem ama o que odeia mas sabe que tem uma trompete empoleirada no ombro e enquanto assim for está bem. E se quiserdes mais comoção ide então beber à doçura das flautas do quase chorinho de “Capitão Simão” acompanhadas do que parece ser um Fender Rhodes. Daí saltem para a melancolicalegria de “Lili e o americano”, coisa de jazz de esquina suja, piano demasiado bebido (e com caruncho na cauda) – faz um belo par com o tema seguinte, movido ao mesmo sentimento turvo de dia que acaba logo quando estava a começar a ser bom.Em “Inquietação” Simões não volta a canção do avesso. O tom, no entanto, é outro. Não diríamos solene, antes cuidado. Talvez não haja a sombra de desespero irado que prenunciávamos em ZMB, antes resignação. A voz parece falhar-lhe e imagina-se que seja com os restos de força das veias a arrastarem o sangue que aquelas palavras vêm à tona. Não é um disco tão despojado quanto Simões defende, mas façamos-lhe a sentida homenagem (e estamos a conter-nos nas palavras): tem tanto (e tento) de Chico como de Edu Lobo ou até Marcos Valle, em particular das obras da década de setenta. E cada arranjo (por aqui há coros, cordas, metais, melódicas, órgãos, pianos, cuícas), de um cuidado imenso, encaixa na umbilicalmente tanto nas canções como nos motivos temáticos que era suposto colorir. No fundo é um disco de instantâneo classicismo que usa a estrutura (re)criada por Chico para, por entre charmes vários e sofisticados arranjos executar a mais antiga das actividades humanas: narrar o humano. Aos 36 anos, Simões é o único homem a solo, depois da geração trovadora de setenta, a botar música que merece ser ouvida em palavras que merecem ser lidas. No mundo das Floribellas, terá valido a pena? Obviamente não: vai tudo ficar na mesma, sempre esteve tudo na mesma. Ainda assim, João Paulo, olha, obrigado por tentares.
JP Simões 1970 NorteSul 8/10"
Excerto de post, Forum Sons, 1.10.2006 (entrevista de João Bonifácio a JP Simões, Y, 29.09.2006)

2 comentários:

José Carlos Gomes disse...

É mesmo um grande disco. Eu dou-lhe 9 em 10.

Silk disse...

Eu ainda não escutei. Mas promete..