sexta-feira, dezembro 15, 2006

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Arendt (I)

"A vitória do animal laborans jamais teria sido completa se o processo de secularização, a moderna perda da fé como decorrência inevitável da dúvida cartesiana, não houvesse despojado a vida individual da sua imortalidade ou pelo menos da certeza da imortalidade. A vida individual voltou a ser mortal, tão mortal como o fora na antiguidade, e o mundo passou a ser menos estável, menos permanente e, portanto, menos confiável do que o fora na era cristã. Ao perder a certeza de um mundo futuro, o homem moderno foi arremessado para dentro de si mesmo, e não de encontro ao mundo que o rodeava; longe de crer que este mundo fosse potencialmente imortal, ele não estava sequer seguro de que fosse real. E, na medida em que devia pressupor que era real, no optimismo acrítico e aparentemente indiferente de uma ciência em contínuo progresso, afastava-se da terra para um ponto mais distante do que qualquer alienação mundana cristã jamais o havia levado. Qualquer que seja o sentido atribuído à palavra "secular" no uso corrente, não pode, historicamente, ser equacionado com mundanidade; pelo menos, o homem moderno não ganhou este mundo ao perder o outro, e tampouco, a rigor, ganhou a vida; foi atirado de novo para ela, lançado à interioridade fechada da introspecção, na qual as suas mais elevadas experiências eram os processos vazios do cálculo da mente, o jogo da mente consigo mesma. Os únicos conteúdos que sobraram foram os apetites e desejos, os impulsos insensatos do seu corpo que ele confundia com a paixão e que considerava "irrazoáveis" por não poder "arrazoar" com eles, ou seja, prevê-los e medi-los. Agora, a única coisa que podia ser potencialmente imortal, tão imortal como fora o corpo político na antiguidade, ou a vida individual na Idade Média, era a própria vida, isto é, o processo vital, possivelmente eterno, da espécie humana.
Vimos acima que, no surgimento da sociedade, foi a vida da espécie que, em última análise, se afirmou. Teoricamente, o ponto crucial, no qual se deu a mudança a partir da insistência na vida "egoísta" do indivíduo, nos primeiros estágios da era moderna, para a ênfase posterior sobre a vida "social" e sobre o "homem socializado" (Marx), ocorreu quando Marx transformou a noção mais grosseira da economia clássica - de que todos os homens, quando agem, o fazem por interesse próprio - em forças de interesse que informam, movimentam e dirigem as classes da sociedade, e através de conflitos dirigem a sociedade como um todo. A humanidade socializada é o estado social no qual impera somente um interesse, e o sujeito desse interesse são as classes ou a espécie humana, mas não o homem nem os homens. O importante é que, agora, até mesmo o último vestígio de acção que havia no que os homens faziam, a motivação implícita no interesse próprio, havia desaparecido. O que restava era uma "força natural", a força do próprio processo vital, ao qual todos os homens e todas as actividades humanas estavam igualmente sujeitos (...) e cujo único objectivo, se é que tinha algum objectivo, era a sobrevivência da espécie animal humana. Nenhuma das capacidades superiores do homem era agora necessária para relacionar a vida individual com a vida da espécie; a vida individual tornara-se parte do processo vital, e a única coisa necessária era "laborar", isto é, garantir a continuidade da vida de cada um e da sua família. Tudo o que não fosse necessário, não exigido pelo metabolismo da vida com a natureza, era supérfluo ou só podia ser justificado em termos de alguma peculiaridade da vida humana em oposição à vida animal - de modo que se podia dizer que Milton escrevera o seu Paraíso Perdido pelos mesmos motivos e em decorrência de impulsos semelhantes aos que levam o bicho-da-seda a produzir seda."
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Hannah Arendt, A Condição Humana, pp. 389-91

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