sexta-feira, janeiro 19, 2007

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[hoje, deixo espaço para a crónica do meu querido amigo Tomaz, longe de nós há três anos, e que versa sobre esse imenso Rio, do Brasil, na sua forma inspiradora de sentir a realidade. Obrigado Tomaz, por aceitares o meu convite]
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O murmúrio do Setentrião.....ou a estranha latitude do imenso verde dilacerado

Rio de Janeiro, 18 de Janeiro de 2007.

Este é o prenúncio de cada manhã, nesta terra estranha, tão longínqua e em simultâneo, tão próxima de mim.
Sou mais um desses "passarinhos urbanos" que como cantou Chico, "chacoalham no trem da Central". Este comboio, que me leva à viagem infinita das faces e da poesia nelas. Umas vezes poesia triste e outras poesia alegre da existência. A lei de um quotidiano.
Venho de um dos muitos subúrbios de um gigantesco subúrbio, de uma gigante metrópole onde cada vez mais, a alma é um bem tão mais precioso que o corpo e a vida em si. O único bem que nos resta para que o samba da violência não nos retalhe, como a mais um, que virá amanhã nas parangonas do jornal matinal "encontrado pela bala perdida".
Aqui no doce encaixe das verdes montanhas que encontram o mar, nesta terra a quem um dia chamaram "Cidade Maravilhosa", me encontro. Rio de Janeiro.
Todas as manhãs, cruzo-me com essas personagens que são os figurantes do filme que protagonizo. Aquele velho doido que vende os pães e o café numa garrafa "termo" e que com um relógio/termómetro na mão, diz no seu pregão: "Salvé guerreiros da luta, vocês são o coração deste povo...Têm ainda pão....Um real...têm ainda café... São oito da manhã, 27 graus tá marcando". E aquela figura é a imagem desta terra, da bondade e da irmandade entre pares, da loucura sã de procurar a alegria na sobrevivência. Porque aqui todos somos irmãos de miséria e virtude. E todos temos mais o sentido do que é realmente a igualdade.
No comboio, encontro os rostos da Baixada (Baixada Fluminense - área periférica a norte do Rio de Janeiro, um conjunto de cidades e bairros, marcados pela profunda pobreza e violência), encontro aqueles batalhadores de 300 reais/mês (aproximadamente 100 euros), que trabalham sem descanso semanal de Domingo a Domingo, para alimentar a prole numerosa. Aqueles rostos levam um sorriso triste de uma eterna esperança. De uma convicção que Deus é o único amparo.
A morte aqui não é pranteada como aí,...a morte é apenas o fim do inferno em que tantos vivem. E a morte, buscando o fundo antropológico africano, é um renovar de esperança para os que ficam, mais mesmo que a saudade que acaba permanecendo.
Na saída do comboio, na velha Central do Brasil (estação principal de comboios do Rio), fervilha em bulício o movimento da mole humana.
Cada um no seu caminho, cada um no meio dos restantes. Os "camelôs" (vendedores ambulantes) vendem tudo o que se deseje. Vendem carga roubada, contra-feita, sem factura, esperando que os Guardas Municipais ou os seguranças dos comboios, não "façam o rapa" (expressão que significa carga apreendida).
À distância da esquina próxima, aquele carro-patrulha com aqueles vultos cinzentos (a Polícia Militar do Rio usa fardas cinzentas escuras), perscrutando qualquer movimento anormal. Vigiam-nos na sombra, com aquelas armas de assalto temidas. A visão do 7,62 ou do M-16 é incomodativa, mas já habitual (7,62 e M-16 são as armas de assalto usadas pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, de grande alcance e muito poder destrutivo). Os rostos dos polícias, sempre tensos. Aqui, morre-se por se estar vivo. Morre-se das balas dos polícias e das balas dos bandidos. As balas matam igualmente, sem distinção. As balas não matam sozinhas, são disparadas e tantas vezes com tão pouco critério.
A cada espaço intercalado, surgem montanhas, que perdem cada vez mais o verde que as cobria desde o início dos tempos. Hoje, cada vez mais crescem aquelas "colmeias" de tijolos e cimento forçado, a que chamaram um dia de "favelas". Ali, talvez seja onde resta a primária nobreza, o "sangue bom", a raiz e ritmo de um povo. Ali também, é onde a sociedade relegou os seus filhos mais desfavorecidos, para a pobreza, a marginalidade e a violência. São Carlos, Providência, Dendê, Pavão-Pavãozinho, Cantagalo, Rocinha, Vidigal, Juramento, Andarái, Macacos, Kerosene, Rebú, Salgueiro, Mangueira, Tatuí, Congonhas, Acarí, Manguinhos, Jacarézinho, Fubá, Chacrinha, Cidade de Deus....estes são alguns dos nomes da ignominia.
São os nomes onde a vergonha de cada um de nós marca, no passar dos dias, o destino de tantos inocentes.
As favelas, onde esses trabalhadores sobrevivem e lutam sem assistência dos mais elementares serviços básicos - sem saneamento, sem educação, sem justiça, sem pão, sem paz -, onde riem e cantam o seu samba choro do dia-a-dia.
Brutalizados por uma máquina policial, que entende que acantonar estas "pessoas de bem", e vivendo na encruzilhada da sua pobreza, reféns dos soldados do tráfico de droga (que acabam mortos e presos, com nunca mais de 20 anos) e que paradoxalmente acabam sendo os benfeitores da comunidade, pois eles são os únicos que suprem a necessidade de consultas médicas, de obras em casa e transportes das comunidades.
As favelas e seus filhos, no limbo do frágil equilíbrio entre bandos criminosos — um bando ao serviço de uma lei que nunca defendeu os seus cidadãos e outro bando que usa estes "filhos de um deus menor" como escudo, e onde poderosos e ricos acabam sendo os beneficiários de um esquema vil, onde mais pobreza e ignorância garantirão o eterno ciclo de uma sociedade que vive sob o signo da desigualdade "genética".
Os filhos nobres da "favela", estão vetados a ser invisíveis, até ao dia em que em qualquer assalto desesperado,"dura da polícia" (expressão que significa repressão policial arbitrária), ou bala perdida na troca de tiros da invasão à favela, os atire para as páginas dos jornais como corpos banhados em sangue jazendo no asfalto, ou irremediavelmente algemados, a caminho de Bangú (presídio estadual do Rio de Janeiro).
Nas nobres praias da cidade, passeiam-se os que estão na outra amplitude desta insanidade, a obscenidade da riqueza, que os mantém reféns do medo em seus condomínios de altíssimo luxo e carros importados blindados.
A solução segundo alguns, seria aplicar a pena de morte. Eu acho que a única pena de morte que devemos aplicar, é a morte de um sistema que cliva uma sociedade, onde os ricos justificam a sua riqueza desde os tempos coloniais portugueses, com um trabalho escravo desses que vivem nas favelas e em subúrbios podres da Baixada.
Aqui há também o samba, fervilhante, e a sensação de que a "vida é só um dia, mas o Carnaval são três...".
O Rio é a terra fértil de onde esses escravos bantos, trouxeram os batuques e repiques, e onde a harmonia dos nossos cavaquinhos gerou o samba. O samba que se universalizou, mas que se fez e faz de lágrimas e sacrifício, para que aquela alegria "que acaba Quarta-Feira" seja a catarse de tanto sofrimento que se acumula.
O meu subúrbio, Campinho - Madureira, com as suas escolas de samba, a Portela, o Império Serrano e a Tradição, é o berço do samba e da "malandragem" carioca.
É arrepiante sentir como se constrói aquele espectáculo, desde o início...e aqui o samba é coisa muito séria.
"Negra é a tristeza da despedida na avenida" cantava o imortal Cartola, espelhando que é triste o fim do Carnaval, quando a Avenida Sapucaí, onde fica o Sambódromo, se fecha e diz um "até breve" com um ano de interregno. E o ciclo repete-se e repetir-se-á.
O Rio é também, a cidade onde aquele esplendor colonial se reflecte de maneira soberba. A obra portuguesa nesta cidade, é maravilhosa. E as igrejas e monumentos emprestam a solenidade que só as grandes cidades podem ter.
Ali, onde descobrimos as razões de uma cidade maravilhosa, quando o sol nasce na baía da Guanabara juntinho ao Pão de Açucar, ou quando o Cristo Redentor, abraça toda a gigante cidade lá desde o alto do Corcovado. Sou particularmente apaixonado, por essa parte da cidade, o Cosme Velho, as Laranjeiras e o muito romântico Largo do Machado, memória espacial viva do lugar de predilecção do grande Machado de Assis.
O Rio é o futebol e aquele imortal Maraca (estádio Maracanã), onde os deuses do futebol marcaram tantos momentos para a posteridade.
Onde o "anjo das pernas tortas", o grande Mané Garrincha, driblou a própria vida, acabando andrajoso e alcoólico, como alguém que desafiou os deuses com o seu talento. Onde milhões de brasileiros, choraram em 1950, a amarga derrota para o Uruguai. Onde Zico, no seu jeito "galinho", encantou. Onde Pelé, fez um golo que tem uma placa que assinala o momento único desse mesmo golo.
O Rio é a terra, onde em qualquer rua, crianças jogam descalças e soltam papagaios de papel, que aqui se chamam "pipas".
O Rio é seguramente, o melhor e o pior lugar de viver, porque a nostalgia e o presente, são dois tempos diferentes e inconciliáveis e quando se perderem os últimos motivos para que o "canto carioca" se solte, aqui o inferno estará à mesma distância do paraíso. Este lindo paraíso......

Um abraço e saudades enormes do meu país, da minha gente, de todos os meus lusitanos amores.

João Tomaz Rodrigues

4 comentários:

Anónimo disse...

Quem é o Tomaz???????

Blackberry disse...

Bem… quanto às linhas do Tomaz! Os meus Parabéns, sinceros. Ontem decidi imprimir e ler em casa, mais uma vez, com mais atenção antes de adormecer e foi…maravilhoso! mas diga-se de passagem que a América Latina é uma inspiração…aquele ambiente é muito rico e se estivermos alerta e disponíveis conseguimos absorver bastante! Não é que tenha lá estado, mas é o que me contam! Beijos e…viva o Tomaz!!!

Anónimo disse...

Agradeço, Blackberry, o seu comentário e espero que de algum modo este retrato da realidade que vivo no meu dia a dia sirva para que todos façamos a reflexão sobre as causas profundas da desigualdade.
Serei um apologista da Latino-America sonhada pro Bolivar, Zapata, Sandino ou Javier Marti.
Uma questão de fé....
Obrigado mais uma vez!!!

Blackberry disse...

Pois Tomaz, tuas palavras dão-nos vontade de rasgar e querer mudar o mundo, mas manter a fé...puxa, não é fácil...Um abraço