segunda-feira, janeiro 29, 2007

.
Contrariedade

Sonho: a tua afirmação - não sei quem tu eras, não me lembro de ti - deixou-me asfixiada. Ouvi-te, calada, séria, demasiado séria...quando acabaste, e os outros ficaram calados enquanto observavam e os seus olhares confirmavam a tua opinião, eu aproximei-me de ti. Estava chateada, sentia que não era justo, que não era verdade. E eu sabia que não era justo, que não era verdade o que dizias. Era apenas a tua opinião. E quem eras tu - sim, quem julgavas tu que eras para afirmares com aquela convicção a tua verdade? - para rebateres um facto, quando esse facto escapava ao teu conhecimento? Era apenas a tua opinião.
Olhei-te. Foi o olhar mais frio e agressivo que posso ter, que podia ter tido, e disse-te que não concordava contigo. Aproximei-me demasiado da tua face. O meu olhar quase tocava o teu olhar, e cuspi-te a minha fúria. Apenas porque me contrariaste. Apenas porque eu sabia mais coisas do que tu mas não conseguia dizer-tas. Apenas porque me contrariavas, porque não sabias tudo, porque era a tua opinião. Ainda tentei. As palavras sairam-me duras e desastradas. Tinhas-me contrariado, o meu conhecimento de todos os factos. Era para eu te ter contado e explicado tudo, bem explicado, calmamente, observar-te mudar de expressão enquanto o fazia. Ver aparecer-te no rosto, a clarividência que te faltava. Não estavas a par de todos os factos. Mas isso não aconteceu. Não consegui.
"Ele era bom, ele sabia bem o que fazia, o que escrevia, como entendia tudo aquilo para além dos outros, para além do comum dos mortais. Ele interessava-se apaixonadamente". Era o que devia ter dito.
Ele sabia. E eu sabia o que ele sabia, o meu amigo. Mas tu não. [e eu não conseguia explicar-te isto. eu tentei, e fi-lo da forma mais irritante, mais despropositada, mais incoerente e irracional...vencida pela fúria de me teres contrariado]
E ele sabia explicar todas as suas escolhas, e tinha sido tudo bem feito, nada perfeito, nem precisava. Ele era bom naquilo, e tinha corrido bem. Bastava tentar explicar-te pausadamente e sem medo que não aceitasses ou compreendesses a minha explicação, os meus argumentos. Talvez fosse o suficiente.

E de repente, afastei-me de mim e olhei-me. Ali, encostada a ti, de frente para ti (mas quem eras tu? a tua cara não era importante, eras apenas alguém a contrariar-me), como se quisesse engolir-te inteiro com a minha fúria. E fiquei perplexa, chocada, quase. Percebi. Claramente, percebi.
E tu não tinhas culpa, e eu não tinha culpa. Era apenas assim, era claro agora. Entendi tudo.
Invadiu-me uma angústia maior do que eu, maior do que aquilo que eu era. E acordei.

Facto: seriam 6 ou 7? Não sei ao certo a idade. Também não importa. Era muito nova. Demasiado nova. Mas era concerteza cedo, demasiado para ser apenas fruto de qualquer condicionamento externo. Correria no sangue?
A discussão familiar foi grande, terrível, na medida dos anos que separavam a minha da tua idade. Não recordo o motivo, não me consigo lembrar. Só recordo a imagem, essa imagem gravada, lembrada sempre.
Fechei-me rapidamente na casa de banho. Furiosa. Orgulhosa e magoada. Fechei-me durante horas na casa de banho e não deixaste ninguém ir lá. Porque raio haveria alguém de ir lá, se eu não podia sobrepôr a minha à tua vontade? Só me restava encurralar-me no forte, trancar-me para que ninguém entrasse, para que não me seguisses. Só podia ficar ali horas e horas para fazer valer a minha posição. E a minha posição só podia ser a de mostrar que não gostava de ser contrariada. Quando me sentia com a razão. O estranho, e engraçado, é que a imagem que guardo na mente é a porta do lado de fora, eu fechada lá dentro. Como se afastada e a olhar para a porta comigo lá dentro, do outro lado. Como se sonhasse e me visse ali e aquilo, aquela imagem, esta imagem, fosse o facto. E o facto é que eu estava lá dentro, fechada, e a única coisa que devia ver era o espaço de dentro, os azulejos, o chão, as loiças, a janela..não sei porque a imagem que guardo é a da porta, do lado de fora.

.

5 comentários:

João disse...

tem de tudo este texto... é muito bonito por isso (também).
K.iss

Anónimo disse...

obrigado, K.
Não foi fácil..mas vale a pena.

Joana Gancho disse...

é um turbilhão de ideias, palavras, sentimentos. é intenso. é uma catarse bonita.

Anónimo disse...

gostei da palavra catarse
escrever é um bocadinho isso, não é?;)
bjs

Joana Gancho disse...

para mim é. ;)
bjs