terça-feira, fevereiro 27, 2007

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"Pertenço a uma linhagem de mulheres à janela, pertenço à terceira geração. A minha bisavó é um caso à parte: nunca estava sem fazer nada, cosia - junto de uma janela, é claro, para ter luz, mas sem quase erguer os olhos - (...) A minha avó sentava-se de tarde na sua poltrona preferida, onde podia estender as pernas, e olhava pela janela. Tinha sempre um tricô no colo, um livro no braço da poltrona, mas ficava ali durante muito tempo sem se mexer, sem pestanejar. Nos últimos anos, talvez esperasse com efeito pelo seu cavaleiro fiel, por aquele Princípe Pudico do Audiovisual que devia, daí a umas horas, entrar pela clarabóia como fazem sempre e por toda a parte os Romeus deste mundo. Mas também acredito que, à sua maneira, ela reflectia - na vida, no amor, em nós -, refazendo a história.

Depois vi a minha mãe esperar por André ou espiá-lo por detrás do reposteiro como princesa na sua torre, não ficava ali muito tempo, ele chegava (...) transpondo todos os obstáculos como o filho do rei abrindo caminho pelo meio dos silvados da floresta encantada, ela abandonava a janela para o acolher no alto das escadas, já não havia vidro, então, nem ecrã, mais nada. Ora, escreve Balzac para explicar o amor que o André inspirou à minha mãe, «na natureza como no mundo das fadas, a mulher deve sempre pertencer àquele que sabe chegar até ela e libertá-la da situação em que enlanguesce».

Quanto a mim...Eu, dava tudo por uma janelinha. Ah! dêem-me o canto de uma janela, ah!, deixem-me ficar de pé com o nariz de encontro ao vidro como uma criança à espera da mãe, dêem-me esse tempo! - Que estás tu a fazer? perguntava o meu pai quando dava comigo assim sem fazer nada (provavelmente a pensar no príncipe encantado, também ele, mas sem lhe ver encanto algum...). Que estás tu a fazer à janela? - nada, respondia eu afastando-me, nada.
O que estou a fazer? A fabricar sonhos, pai, a fabricar um sonho, sem parar. O que faço aqui? Amor, faço amor, não faço outra coisa!
«A natureza de uma mulher, escreve Edit Wharton, é semelhante a uma casa grande com muitas divisões [...], e no quarto mais recôndito, o santo dos santos, a alma está sozinha à espera de um ruído de passos que não chega nunca.»
O objecto da espera, podemos chamar-lhe o príncipe encantado, se quisermos, por piada, a fim de reduzir o sonho à lenda e remeter a mulher para a infância. Mas não é isso. Do que a alma está à espera nesse quarto, e o corpo colado à janela no canto mais recôndito, não é de um príncipe, mesmo encantado, não, é de passos, do ruído de passos - não de um homem que anda, mas do eco de um andar, não do homem a chegar, mas dos passos que não chegam, até ali, até ela, à escuta - não até mim, este não que tudo me opõe, não te amo, não posso, não sei, estes passos que não chegam nunca, nunca lá chegarei, estes passos que me abandonam, será isto razão para deixar de estar atenta? Procede-se da mesma forma com os poemas e os romances? Que se faz senão esperar o que nunca acontece - a forma pura, a inspiração divina, a palavra certa? uma coisa que se possa agarrar sem destruir o desejo que se tem dela? - Que estás a fazer? dizia o meu pai. Estás à espera de quê...ou de quem? - Não, pai, não estou à espera de ninguém, não pretendo nada, não estendo os braços a nada, debruço-me sobre o nada, espírito, corpo, nervos: nada de passivo na espera, é uma tensão, uma atenção - esperar, é procurar -, tendo para o terno e o atento, é uma coisa que não tem nome, diluo-me na paisagem, no vidro, na transparência, passo para trás do espelho, do reflexo, da vaga, está do outro lado o que eu quero, ainda mais longe, ainda...O que uma mulher quer, pela sua natureza, é isto: um além, um horizonte, um vazio ou um deus para além da linha onde se separam o céu e a água - em amor, as mulheres têm mais a ver com a religião judaica: o deus delas ainda não veio. Mas não são só as mulheres, vamos lá, também há homens (são da mesma natureza). (...)

Eis a razão porque não se devem afastar as meninas das janelas nos manuais escolares, mas pôr lá os meninos - porque o rosto à janela, é o sonho, é a arte e é o amor: nem a prisão, nem a ociosidade, não, pelo contrário, uma actividade rica de futuro - uma prática livre do impossível.
Contudo, é claro, o objecto real existe - objecto de amor, objecto de arte: há pessoas que amamos, tal como acabamos por escrever livros. Mas, dirão, que pode fazer o homem amado nesse quarto de mulher onde ela está sozinha, em busca de quê, de quem? Pois bem, pode estar com ela, sozinho com ela, a sós. Amar uma mulher, amar verdadeiramente uma mulher, talvez seja apenas acompanhá-la na sua espera - não acreditar que se é o objecto de todos os seus desejos, aquele cuja vinda pode satisfazê-la, 'não procures mais, sou eu', também não pensar, por oposição, que é estúpido esperar, que é vão, esse movimento em direcção a nada, um feminino irrisório, um sentimentalismo idiota, que não existe, esse deus escondido, esse príncipe. Não, ficar ali simplesmente, no respeito da espera e da vigilância, saber que se é para ela a árvore e não a floresta, a árvore em que ela pintou um ponto de referência tendo em vista um longo, longo caminho, o marco, a moita, um tronco - uma paragem, um arrimo, um repouso, um refúgio antes de prosseguir essa longuíssima espera, essa demanda sonhadora, esse descaminho; dançar com ela em volta desse ponto, a janela, a ponte para o horizonte, o outro, o além, abraçá-la sem a apertar, abraçá-la sem a asfixiar com ciúmes e censuras, junto dessa janela. O amor é então como o poema, um sopro em torno de nada, o beijo do vazio para o qual se estendem os lábios, essas letras que o dedo desenha no embaciado do vidro, esses sinais para escrever na janela o nome de quem não chega nunca."

in O Amor, romance, Camille Laurens, pp. 136-139, D. Quixote, 2004


http://www.evene.fr/celebre/biographie/camille-laurens-3664.php

http://fr.search.yahoo.com/search?ei=ISO-8859-1&fr=cb-eve&meta=vl%3D&p=Camille+Laurens

10 comentários:

kataklismo disse...

Eu gosto de dormir com a cabeça encostada à janela, mas não deve ter significado nenhum.

Anónimo disse...

Eu prefiro o sofá... mas tb duvido que tenha algum significado. Só se fôr a TV.
G.Slade

kataklismo disse...

Estava a pensar nas viagens. Em casa durmo em qualquer sítio.

Blackberry disse...

Olha...obrigada por me lembrares que posso ter a minha janelinha, sem pudor…merci!

Anónimo disse...

n agradeças, foi com gosto que deixei este pedaço..;)

kataklismo disse...

Parece-me que o estar à janela não é uma questão de género, é mais de personalidade.

Anónimo disse...

a escritora tem esta visão particular da 'janela' em relação ao género feminino...embora "Mas não são só as mulheres, vamos lá, também há homens (são da mesma natureza)". Alguns esperam pela Princesa Encantada, se calhar..

Blackberry disse...

...mas não admitem...-)

Anónimo disse...

Claro q queria uma princesa encantada, mas nunca a procurei à janela - o meu quarto dava para as traseiras e só por lá passavam gatos vadios, entre eles um persa que se tornou no meu melhor amigo...

PS - Já encontrei a princesa

G.Slade

Anónimo disse...

a tua princesa é linda e doce, és um sortudo G.Slade.
mas não sendo o amor experienciado da mesma forma por todos, jamais entenderás/aceitarás o que escreve Camille Laurens. penso eu de que...
(jás as minhas janelas andam tão sujas que até tenho medo de me aproximar dos vidros..nem gatos nem princípes, Ajax é do que mais preciso!!)