sexta-feira, abril 13, 2007

A porta
 
Saíste do prédio batendo com a porta, suavemente, como se assim evitasses que te escutassem, o teu bater e surgisse de repente alguém a implicar contigo. Olhaste em redor, desconfiada, o caminho livre, não havia perigo à vista, podias ir à tua vida. Seguiste pela rua baixando a cabeça, discretamente, mas às vezes é pior a emenda e num instante a ergueste de novo, veio-te a imagem dos caloiros, a tua imagem de quando caloira, a baixar a cabeça perante nada, ou coisa que o valha. Continuaste de cabeça agora erguida, sem orgulhos, sem nariz empinado, um discreto sorriso a disfarçar o medo, medo de quê?, e afinal nem era bem medo, era só um medo assim-assim, e viraste na esquina, nova rua acima, um homem estranhamente vermelho, não corado, vermelho, fixava o olhar nos dois telemóveis que segurava nas mãos, parecia não estar ali, sentado nas escadas de acesso aos prédios que o amparavam por trás, parecia longe de tudo o que o rodeava, até do ruído, um ar quase cómico, quase. Foste andando com a imagem dele colada à tua curiosidade, a curiosidade de quê?, e as paredes dos prédios que ladeavam o teu caminho eram feias, escrevinhadas com frases indecifráveis, sobrepostas, arabescos de cor desbotada, estas não foram paredes inscritas para serem lidas com atenção, iam sendo desenhadas apenas para efeitos decorativos, brincaste.
A leveza dos teus passos ia crescendo e em breve avistaste a rotunda onde te disseram que deverias chegar, a referência no caminho, o marco que te levaria a mudar de direcção, estavas a ir bem, não havia que enganar, ainda hesitaste alguns segundos, pareceu-te que já avistaras a tal espécie de vale que terias de descer à direita, e quase seguias por ali abaixo, mas não, precipitação tua, mais uma daquelas inconsequentes e recorrentes, normalmente acabavas a rir, e agora sim, estavas já na rotunda e prestes a chegar ao teu destino: o supermercado. O teu destino, deuses!
Uns quantos miúdos brincavam entre dois prédios, outros tantos rapazes mais à frente, e mais velhos, conversavam alto e animadamente, pensaste que iriam dizer-te alguma coisa quando olharam na tua direcção, mas passaste por eles sem os evitar e eles nada disseram, mas também ó miúda, tu não és loiraça nem alta, nada de decotes pronunciados ou finos saltos altos a produzir caminhares bamboleantes, nada disso, estavas distante da maioria das variáveis utilizadas na fórmula do cliché da mulher-com-quem-homens-se-metem-na-rua. E no entanto, sabes inútil e despropositado qualquer cliché, quando todas as mulheres são abordadas nas ruas, das mais diversas formas, por incontáveis motivos. Chegaste ao teu destino sã e salva, nada de assaltos, nada de se meterem com a tua frágil pessoa, neste momento, já lá vão os tempos em que vivias tu no subúrbio e andavas sozinha madrugada dentro, ainda que depois de beberes uns quantos moscatéis a mais, quando indevidamente contabilizadas as consequências desse acto eufórico com que se celebravam as sextas e os sábados à noite no Barreiro Velho da tua adolescência, no meio dos amigos, e apesar de tudo, e de estares a armar em suburbana valente, o que é certo é que só te perdeste deles e partiste - pela noite sombria daquela cidade feia habitada por gente bonita – uma única vez, que te lembres. Bom, e ali estavas tu, com receio de seres incomodada porque atravessavas um bairro ‘complicado’, um subúrbio cinzento da Grande Cidade, onde as casas são muito mais baratas que em outros sítios à beira mar plantados e os rapazes que passam droga na esquina têm navalhas nos bolsos e um brilho estranho no olhar e te assustam. Bom, ali estavas tu, que agora vives no campo e também agora tens medo de coisas, que coisas? que não te assustaram durante anos e anos, a entenderes que os preconceitos se perdem durante uma vida inteira, mas também se colam à pele sem aviso prévio de atracagem, e se vão instalando sub-repticiamente sem que deles dês conta senão quando se lembram de aparecer na forma de receios infundados, na maioria das vezes que aparecem.
Voltaste para a casa sem sobressalto, sem obstáculos a ultrapassar senão a curta distância que separou a porta que tinhas batido suavemente, e o ponto de destino a que te propuseras.
Abstraída no caminho, ficou-te a cor da pele do homem sentado nas escadas perto da paragem do autocarro, um misto de tristeza com ironia espreitou à janela da tua alma, fora pela expressão dele que baixaras o olhar, súbita e precipitadamente, como se estivesses a roubar aquele momento de privacidade entre ele e os telemóveis, a interferir no namoro entre ele e as ondas invisíveis que dali partiam, para qualquer lado do mundo, e isso te embaraçasse. Quando regressaste à casa, passaste de novo por ele, sentado no mesmo sítio, cara muito vermelha, fixava os dois telemóveis sem pestanejar.
Depois, quase no fim, surpreendida, sim, não te pareceu logo que o fosses, mas assim aconteceu quando se cruza no teu caminho um senhor cuja idade indefinida é aquela em que não se consegue perceber se a pessoa é idosa, ou se ainda não o é, estava muito bem vestido, o senhor, era bonito, ‘beleza colonial’ pensaste (riste da tua própria parvoíce), lembrou-te a África que não conheces, a África que reconheces e sabe bem. Imaginaste-o em tertúlias de amigos na Ilha, fins de tarde amenos no alpendre do café com chão de madeira, uma luz breve de sabor a mar entrava pelas janelas baixas, sorria. “Muito boa tarde” – ligeiro aceno de cabeça - dissera ao passar por ti, um cumprimento educado de tão sentido, “muito boa tarde” dissera ele e tu só te apercebeste que era mesmo para ti quando já ele tinha passado o teu alcance de visão, quando já tinhas perdido aquela fracção de segundo em que responder-lhe com a mesma educação e porte já não seria possível, e ainda assim, e também por isso, tentaste reparar a tua falta com um “boa tarde” soprado para trás timidamente. 

Ganhaste o dia. Sorrias. Deixaste a porta deslizar livremente, no teu regresso.


Évora, Abril de 2007

4 comentários:

Pedro Villa disse...

O cenário ex-colonial do café que descreves-te, lembrou-me uma fotografia, não sei onde, nem quando a vi e ainda menos a quem pertence, se é que tem apenas um autor, ou um nome!...

Desde então, sempre que imagino um café em África, recordo essa imagem. Soalho de madeira impecavelmente encerado, ambiente rústico, balcão alto, meia-luz e uma saca com grão de café a um canto... Se calhar a realidade é bem diferente, mas a tua descrição trouxe-a à memória...

***

1% disse...

obrigado pelo momento, mana. andas a trabalhar bem...

Anónimo disse...

Uma porta; que tanto nos protege do mundo lá fora, como o nos dá a conhecer quando a abrimos :)

Anónimo disse...

Imagem recorrente, diria eu, do nosso imaginário colectivo...:)

Quem anda a trabalhar bem és tu, meu querido emigrante, a avaliar pelo que já espreitei;)

Glitz, vou tentar ir às tuas New York Sessions, estarei a trabalhar lá em baixo, mas.. BB?Mmmm.. Vai valer:)