segunda-feira, outubro 21, 2013

ensaio II

Era uma tarde de fim de Verão, era o início do Outono. O céu entrava na casa num raro tom alaranjado, irrepetível em qualquer outro momento dos dias, uma cor que se entranhava docemente no estômago, e depois subia, fervilhava. Olhando para cima, sentia-se planar com os pés presos na terra, como se pairasse numa secreta dimensão das coisas que são. Saiu ao encontro dele com passo apressado, como aliás, apressado o era em quase todas as coisas que a faziam mover-se. Era assim que caminhava, raramente se lhe viam passos lentos e sentidos, apenas uma espécie de esvoaçar, curtinho e saltitante, uns pés determinados, nervosos, loucos. Sabia que as crianças estavam à sua espera ;ele dissera-lhes que iriam ter uma visita, alguém que queria conversar com eles um bocadinho. Estava expectante com a reação, não era fácil criar empatia e deixá-los atentos, por-se-ia à prova, de novo. A porta estava aberta, subiu as escadas até ao piso onde ele se encontrava a desenhar com as crianças. Ou onde as crianças o distraíam com os seus desenhos enquanto as observava e sorria. Podia até ser um sorriso levemente desdenhoso. Pressentia-lhe um sorriso na face morena, moura, ainda que ele se encontrasse de costas para ela. Aproximou-se silenciosa, e quando quase a sentir o cheiro do seu pescoço, tão perto do pescoço dele, beijou-o. Entrevia que não ficava retraído com estas aproximações dela, acanhadas e provocadoras, subtis e ao mesmo tempo claras de intenção, de desejo, se o sorriso dele era imperturbável. – Olá, disse-lhe ele, um beijo discreto na face. Levou-a para perto da sua mesa de trabalho, caótica, cómica, feliz. – Anda, quero apresentar-te aos miúdos, estão curiosos e já perguntaram quem eras, disse piscando-lhe o olho, enquanto ela esboçava um sorriso fraco. Os miúdos não deram logo pela entrada dela, mas estavam agora atentos aos dois. – Meninos, esta é a Violeta, de quem vos falei. Olhos fixos nela.  - Vamos então fazer uma pausa nos desenhos, a Violeta vai explicar porque veio falar com vocês e é para irem respondendo, depois voltamos aos desenhos. Ela avançou tentando fazer contacto com o olhar, lera algures sobre a importância de transmitir um ar seguro às crianças; talvez uma frase feita a salvasse. Tentou falar pausadamente e foi respondendo às primeiras perguntas de alguns, os mais ariscos, depressa entendeu que a coisa estava a decorrer com demasiada formalidade, aquilo assim não iria resultar muito bem. Acabou sentada no chão, onde algumas das crianças se encontravam, falou com eles sobre os desenhos espalhados pela enorme sala, enquanto ele, dissimulado, a contemplava por de trás do estirador velho, remexendo em papéis e desenhos por ali espalhados. Ele não era metódico na organização dos materiais, gostava de ter as coisas limpas, apenas. Ela foi fazendo as perguntas e as respostas dos miúdos eram apontadas num caderno. Abreviava as palavras para acompanhar o ritmo das crianças, observava os seus movimentos, lia os gestos e ia cogitando, pouco estava ainda claro, era a experiência in loco, um pré-teste de capacidade. Da sua capacidade. A dado momento, pelo seu olhar periférico nota que ele está no fundo da sala, sentado, a observá-la na interação com os miúdos e a desenhar simuladamente. Sente-se estranha, não quer que ele se aperceba que já o viu, tenta fingir que não se sente observada, desvia o rosto na direção oposta, continua a sorrir  e a tentar mostrar naturalidade. É sempre assim quando se sente observada por um homem que a interessa, por quem sente desejo, a quem quer agradar. Porque é disso que se trata, seduzi-lo. Nessa noite, depois de ele a deixar em casa, instalou-se no sofá para ler os apontamentos, a preguiça impediu-a de se sentar na secretária que tinha no escritório, e aí adormeceu ao fim de poucas horas, com as luzes acesas, vestida, de cabeça pendurada sobre o peito, em posição desconfortável mas não tanto ao ponto de a impedir de adormecer com profundidade, ou pelo menos assim lhe parecia quando abria os olhos repentinamente depois de um qualquer som mais alto vindo da televisão a acordar. Este cenário repetia-se por incontáveis noites, sobretudo as de Inverno, também porque gostava de se deixar ficar no sofá, como se o despir-se e enfiar-se na cama indicasse que o dia seguinte estava mais próximo e ela, que gostava das noites, de as aproveitar ao máximo, mesmo sabendo que assim repartia o seu sono em duas partes distintas, a profunda e desconfortável no sofá torto, a última na cama, agitada, seguia sempre a tentação da preguiça. A preguiça era e sempre terá sido, o seu pecado. Ela está sentada num espaço desconhecido onde ele se encontra também, aproxima-se dela lentamente, sério, fixando os olhos nela, no seu corpo, coloca-lhe a mão no peito, espalmada firme contra o tórax, ou mais abaixo, ela não sabe, ou não quer saber se é contra os seios, baixa o olhar e nota que a sua camisa tem um desenho ininteligível estampado ali, onde ele pousa a mão, talvez seja por isso, ele tira a mão quando ela se levanta timidamente dirigindo-se para junto de algumas crianças que brincam no chão, entretidas com os seus jogos, como se eles ali não estivessem por perto, e começa a falar com elas por meio de larachas, a tentar agradar-lhes, a tentar prender as suas atenções, quando se vira na direção dele e o vê a desenhá-la, a desenhá-los?, não sabe, apenas percebe que tem de continuar a brincar com os miúdos como se ele ali não estivesse, concentrado no desenho, olhando na sua direção mas como se ela fosse apenas uma paisagem que ele pinta concentradamente. E acorda. São quase 2:30h da manhã, levanta-se a custo do sofá quente e dirige-se à cozinha onde bebe um copo de água, saboreia-o como se fosse chá, e quando passa pela casa de banho olha-se no espelho, mexe no cabelo, tenta perceber se ainda é bonita, está estremunhada, confusa com o sonho e ruma ao quarto despindo-se com uma ligeireza súbita para aquela hora da madrugada. Enfia-se entre os lençóis, almejando retomar o mesmo sonho, reproduzir a sensação de um quase desconhecido que a desenha, e que ele a ache cativante quando tudo o resto emergir, para além da superfície da folha do papel amarelado.

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